Imagine a cena: na sala de estar, a família assiste ao telejornal, quando, no intervalo, aparece a propaganda de uma marca de cerveja. A filha pequena acompanha com olhos curiosos e depois pergunta:
- Pai, o que é devassa?
O pai, tentando encontrar a melhor definição, apela para o dicionário:
- É uma pessoa depravada, dissoluta, libertina, licenciosa.
- E o que é uma pessoa depravada e libertina - volta a perguntar a filha.
A coisa fica complicada. O pai fecha o dicionário e tenta sozinho, medindo as palavras:
- É alguém que não se comporta bem... “Fica” com muitas pessoas, faz sexo sem compromisso. Essas coisas.
- A Sandy não era uma boa moça de família?
- Creio que sim.
- Ela não é casada?
- Sim, filha, a Sandy é casada.
- A Sandy é devassa?
O pai pensa um pouco, procura acompanhar a lógica da filha, coça o queixo e reponde com certa insegurança:
- Não. Acho que a Sandy não é devassa. Pelo menos acho que nunca foi.
- Então por que ela fez esse comercial que diz que todo mundo tem um lado devassa?
- Não sei. Talvez pelo dinheiro. Talvez por brincadeira. Sei lá.
- Posso brincar de ser devassa também?
No país do carnaval, quando a nudez e a baixaria viram brincadeira, por que não brincar com a devassidão? Por que não minimizar a imoralidade considerando normal o bizarro e o indecente? Os pais que se virem para explicar essas coisas para os filhos.
Não sei o que passa na cabeça da Sandy; se ela fez o comercial por “brincadeira” ou por dinheiro (será que precisa?). Não sei se ela cansou de vez da imagem de garota “certinha”. O fato é que a campanha publicitária da cerveja está dando o que falar. Virou motivo de piada no Twitter e permaneceu alguns dias nos Trend Topics como tema mais comentado (“A Sandy é tão devassa que um dia passou em frente à casa da Wanessa Camargo, tocou a campainha e saiu correndo!”, foi um dos melhores #sandyfacts que surgiram na rede social). Segundo os publicitários da agência responsável pela campanha, a intenção era justamente esta: criar repercussão e polemizar. Conseguiram.
Em entrevista ao programa Conexão Direta do canal GNT, exibido em dezembro de 2003, Sandy disse que não gostava de cerveja: “Eu não gosto do gosto de cerveja. Não importa se é com álcool ou sem álcool. Acho amargo a cerveja. Gosto de bebidas mais docinhas.” Em resposta a essa incoerência, Sutton, sócio e diretor de criação da agência que criou a campanha, alfineta: “Será que a Juliana Paes toma Antarctica?” Segundo ele, é sabido que a Sandy não é uma bebedora de cerveja ou alguém que frequente baladas. “O conceito [nessa campanha] é mostrar que a Devassa é democrática, que até alguém que não é fã de cerveja deveria tomá-la. Nosso objetivo é conquistar novos consumidores”, diz Sutton.
Se o objetivo é mostrar que até quem não é fã de cerveja pode tomar a bebida, fica também a ideia de que mesmo quem não é devasso pode experimentar a devassidão, ainda que seja de vez em quando – no carnaval apenas, quem sabe?
Nesta semana, foi noticiado que metade dos homens tem o vírus HPV, cujo contágio se dá principalmente por via sexual. O HPV é em grande parte responsável pelo câncer de colo de útero, entre outros. A aids ainda ceiva milhares de vidas que se envolvem em sexo inseguro (como se houvesse sexo seguro fora dos limites estabelecidos pelo Criador do sexo). Pesquisa realizada anos atrás indicou que jovens envolvidos com sexo sem compromisso e sem romantismo desenvolvem depressão, baixa autoestima e até anorexia. Ficou provado que ninguém gosta de se sentir um objeto de prazer. Outra pesquisa indicou que metade dos brasileiros se diz insatisfeita com sua vida sexual, embora se apregoe na mídia em geral que o Brasil é um país “fogoso” e as revistas femininas só falem de sexo. Parece que o problema não está na quantidade.
Anos atrás, também, a revista Criativa afirmou em nota que o jogador Kaká é “sem graça” porque resolveu casar virgem. Engraçados são os jogadores devassos, que se envolvem com travestis, casam e descasam como quem troca de roupa?
A Sandy que me desculpe, mas ao emprestar sua imagem para uma marca de cerveja que promove a devassidão como se fosse brincadeira acabou prestando grande desserviço a uma geração carente de valores e que caminha para a falência moral.
Esse cenário devasso foi profetizado há muitos anos nas páginas da Bíblia Sagrada. E meu único consolo está em saber que logo isso terá fim e iremos morar num lugar em que as pessoas serão vistas como filhos e filhas de Deus, não como pedaços de carne em exibição no açougue carnavalesco da devassidão.
Michelson Borges
Nota 1: O diálogo acima entre pai e filha é fictício, mas a história a seguir é real: num dos raros dias em que nos sobra um tempinho para isso, estávamos assistindo ao telejornal, quando, no intervalo, surgiu a “Globeleza” sambando completamente nua. Minha filha se espantou: “Pai, ela está pelada!” Imediatamente desliguei a TV e não a liguei mais desde então (pelo menos até que a palavra “carnaval” não mais esteja nos noticiários e nos comerciais). À medida que o tempo passa, fica mais difícil criar os filhos neste mundo e prepará-los para a cidadania celestial. Quem puder, fuja das cidades nesta época. Minha família já está com as malas prontas.[MB]
Nota 2: Segundo estudo do Instituto Sensus feito em 2004 em todo o Brasil, 57% dos brasileiros não gostam de carnaval e somente 21% pretendiam brincar nas ruas ou viajar para brincar no carnaval. A pesquisa mostrou ainda que 49% dos brasileiros queriam descansar em casa no feriado e apenas 6% pretendiam viajar. Outra pesquisa, realizada no Espírito Santo pelo Instituto Futura, em 2011, entrevistou 408 pessoas e mostrou que mais de 60% dos capixabas não gostam dos dias de folia. Os principais motivos para rejeitarem a festa é que 17,3% preferem tranquilidade à agitação dos blocos e desfiles de escolas de samba, enquanto 14,5% reclamam do aumento da violência no feriado. Só que a mídia faz todo mundo pensar que carnaval e devassidão são manias nacionais. Não caia nessa.[MB]
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